maio 30, 2009 às 3:33 pm | Publicado em joão cabral de melo neto | Deixe um comentário

O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. O amor comeu meus cartões de visita. O amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome.

O amor comeu minhas roupas, meus lenços, minhas camisas. O amor comeu metros e metros de gravatas. O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus. O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos.

O amor comeu meus remédios, minhas receitas médicas, minhas dietas. Comeu minhas aspirinas, minhas ondas-curtas, meus raios-X. Comeu meus testes mentais, meus exames de urina.

O amor comeu na estante todos os meus livros de poesia. Comeu em meus livros de prosa as citações em verso. Comeu no dicionário as palavras que poderiam se juntar em versos.

Faminto, o amor devorou os utensílios de meu uso: pente, navalha, escovas, tesouras de unhas, canivete. Faminto ainda, o amor devorou o uso de meus utensílios: meus banhos frios, a ópera cantada no banheiro, o aquecedor de água de fogo morto mas que parecia uma usina.

O amor comeu as frutas postas sobre a mesa. Bebeu a água dos copos e das quartinhas. Comeu o pão de propósito escondido. Bebeu as lágrimas dos olhos que, ninguém o sabia, estavam cheios de água.

O amor voltou para comer os papéis onde irrefletidamente eu tornara a escrever meu nome.

O amor roeu minha infância, de dedos sujos de tinta, cabelo caindo nos olhos, botinas nunca engraxadas. O amor roeu o menino esquivo, sempre nos cantos, e que riscava os livros, mordia o lápis, andava na rua chutando pedras. Roeu as conversas, junto à bomba de gasolina do largo, com os primos que tudo sabiam sobre passarinhos, sobre uma mulher, sobre marcas de automóvel.

O amor comeu meu Estado e minha cidade. Drenou a água morta dos mangues, aboliu a maré. Comeu os mangues crespos e de folhas duras, comeu o verde ácido das plantas de cana cobrindo os morros regulares, cortados pelas barreiras vermelhas, pelo trenzinho preto, pelas chaminés.  Comeu o cheiro de cana cortada e o cheiro de maresia. Comeu até essas coisas de que eu desesperava por não saber falar delas em verso.

O amor comeu até os dias ainda não anunciados nas folhinhas. Comeu os minutos de adiantamento de meu relógio, os anos que as linhas de minha mão asseguravam. Comeu o futuro grande atleta, o futuro grande poeta. Comeu as futuras viagens em volta da terra, as futuras estantes em volta da sala.

O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte.


do livro Os Três Mal-Amados – João Cabral de Melo Neto

Psicografia

maio 30, 2009 às 3:28 pm | Publicado em Ana Cristina Cesar | Deixe um comentário

Tambem eu saio à revelia
e procuro uma síntese nas demoras
cato obsessões com fria têmpera e digo
do coração: não soube e digo
da palavra: não digo (não posso ainda acreditar
na vida) e demito o verso como quem acena
e vivo como quem despede a raiva de ter visto

Ana Cristina Cesar

FAGULHA

maio 30, 2009 às 3:26 pm | Publicado em Ana Cristina Cesar | Deixe um comentário
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Abri curiosa
o céu.
Assim, afastando de leve as cortinas.

Eu queria entrar,
coração ante coração,
inteiriça
ou pelo menos mover-me um pouco,
com aquela parcimônia que caracterizava
as agitações me chamando

Eu queria até mesmo
saber ver,
e num movimento redondo
como as ondas
que me circundavam, invisíveis,
abraçar com as retinas
cada pedacinho de matéria viva.

Eu queria
(só)
perceber o invislumbrável
no levíssimo que sobrevoava.

Eu queria
apanhar uma braçada
do infinito em luz que a mim se misturava.

Eu queria
captar o impercebido
nos momentos mínimos do espaço
nu e cheio

Eu queria
ao menos manter descerradas as cortinas
na impossibilidade de tangê-las

Eu não sabia
que virar pelo avesso
era uma experiência mortal.

Ana Cristina Cesar

A ventania

maio 8, 2009 às 1:00 am | Publicado em Eduardo Galeano, Frases soltas | 4 Comentários
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Assovia o vento dentro de mim. Estou despido. Dono de nada, dono de ninguém, nem mesmo dono de minhas certezas, sou minha cara contra o vento, a contravento, e sou o vento que bate em minha cara.

 Eduardo Galeano

Recordar: Do latim re-cordis, voltar a passar pelo coração. Eduardo Galeano

maio 8, 2009 às 12:57 am | Publicado em Eduardo Galeano, Frases soltas | Deixe um comentário
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A casa

maio 8, 2009 às 12:49 am | Publicado em Eduardo Galeano | 3 Comentários
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         1984 tinha sido um ano de merda. Antes do infarto, tinham me operado as costas; e Helena tinha perdido um bebê no meio do caminho. Quando Helena perdeu o bebê, a roseira da varanda secou. As outras plantas também morreram, todas, uma atrás da outra, apesar de serem regadas a cada dia.

 A casa parecia maldita. E no entanto. Nani e Alfredo Ahuerma tinham passado por lá algus dias, e ao ir embora escreveram no espelho:

Nesta casa fomos felizes.

E também nós tinhamos encontrado alegria naquela casa de repente amaldiçoada pelos ventos ruins, e a alegria tinha sabido ser mais poderosa que a dúvida e melhor que a memória, e por isso mesmo aquela casa barata e feia, num bairro barato e feio, era sagrada.

 

A perda

 

Helena sonhou que estava na infância, e não via nada. Apalpando na escuridão, ela pedia ajuda, pedia luz aos gritos, mas ninguém acendia as luzes. Naquele negror não podia encontrar as suas coisas, que estavam esparramadas pela casa inteira e por toda a cidade, e ela buscava o que era dela às cegas, na cerração, e também buscava algodão ou trapos ou qualquer coisa, porque estava perdendo sangue, rios de sangue, entre as eprnas, muito sangue, cada vez mais sangue, e embora não visse nada, sentia aquele rio vermelho e espesso que se soltava do seu corpoe se perdia nas trevas.

 Eduardo Galeano

 

Sentei no sofá e li em voz alta, para o meu pai ouvir estes trechos -achei que o interessaria.  E longe do sofá, sentada à frente do computador, minha mãe, ouvindo a história, começa a chorar.Era sua memória. Sua história emergindo e doendo. Lembrou-se por certo das duas irmãs que nunca tive. (Maracujá)

Celebração da voz humana/2

maio 8, 2009 às 12:16 am | Publicado em Eduardo Galeano | 3 Comentários
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Tinham as mãos amarradas, ou algemadas, e ainda assim os dedos dançavam, voavam, desenhavam palavras. Os presos estavam encapuzados; mas inclinando-se conseguiam ver alguma coisa, alguma coisinha, por baixo. E embora fosse proibido falar, eles conversavam com as mãos.

Pinio Ungerfeld me ensinou o alfabeto dos dedos, que aprendeu na prisão sem professor:
– Alguns tinham caligrafia ruim – me disse -. Outros tinham letra de artista.A ditadura uruguaia queria que cada um fosse apenas um, que cada um fosse ninguém: nas cadeias e quartéis, e no país inteiro, a comunicação era delito.

Alguns presos passaram mais de dez anos enterrados em calabouços solitários do tamanho de um ataúde, sem escutar outras vozes além do ruído das grades ou dos passos das botas pelos corredores. Fernández Huidobro e Mauricio Rosencof, condenados a essa solidão, salvaram-se porque conseguiram conversar, com batidinhas na parede. Assim contavam sonhos e lembranças, amores e desamores; discutiam, se abraçavam, brigavam; compartilhavam certezas e belezas e também dúvidas e culpas e perguntas que não têm resposta.

Quando é verdadeira, quando nasce da necessidade de dizer, a voz humana não encontra quem a detenha. Se lhe negam a boca, ela fala pelas mãos, ou pelos olhos, ou pelos poros, ou por onde for. Porque todos, todos, temos algo a dizer aos outros, alguma coisa, alguma palavra que merece ser celebrada ou perdoada”.

Eduardo Galeano

“Torna-te aquilo que és” (Nietzsche).

maio 8, 2009 às 12:12 am | Publicado em Nietzsche | Deixe um comentário
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